Saturday, May 2, 2015

CHICO E EDU



Chico Buarque e Edu Lobo podem se orgulhar de ter composto aquele que é, provavelmente, o melhor disco de trilha-sonora concebido para balé no Brasil. O que impressiona no repertório inspirado no poema A Túnica Inconsútil, da lavra de Jorge de Lima, de 1938, é que ele funciona excepcionalmente bem longe do palco, no formato fonográfico. Pode-se afirmar inclusive que Chico e Edu se empenharam tanto na delicada tarefa de fazer levitar bailarinos, que acabaram criando uma obra que supera, e muito, os versos do poeta alagoano.



Para Edu, compor para o Grande Circo Místico foi desafiador:

- Eu me perguntava como era possível tirar uma hora e meia de balé, 12 cenas, daquele poeminha. O que é que havia lá dentro, por onde começar? Minha sorte é que eu tinha um grande parceiro, o Chico. Foram as desdobradas que ele deu em cada sugestão de personagem que me salvaram.

Para Chico Buarque a tarefa também não foi das mais fáceis. Em depoimento à jornalista Ana Maria Bahiana em 1993, o compositor afirmou:"Apesar de ter tido uma formação religiosa, eu arquivei um pouco esse meu passado, nunca me interessei por misticismos, essa coisas. Tive de me aplicar, estudar mesmo, para poder fazer essas letras."

E essa descrença no esoterismo aparece explícita em Sobre Todas as Coisas, aqui interpretada por Gil, em que Buarque dispara diversos questionamentos existenciais: “Ao Nosso Senhor/ Pergunte se Ele produziu nas trevas o esplendor/ Se tudo foi criado - o macho, a fêmea, o bicho, a flor/ Criado pra adorar o criador...Ou será que o deus/ que criou nosso desejo é tão cruel/ Mostra os vales onde jorra o leite e o mel/ E esses vales são de Deus”.

A trilha de O Grande Circo Místico perpetrou clássicos da moderna MPB, como Beatriz, na voz de Milton Nascimento, A Bela e a Fera, com Tim Maia, O Circo Místico, por uma afinadíssima Zizi Possi, e Gal Costa em ótima fase na História de Lily Braun. Tudo arranjado por Edu e Chiquinho de Moraes.    





Há outras faixas que são afagos na memória, como A Ciranda da Bailarina, com um coro infantil, Valsa dos Clowns, em registro impecável de Jane Duboc, e Meu Namorado, na voz de Simone. O elenco de instrumentistas, como não poderia deixar de ser, é dos melhores: Antonio Adolfo e Cristóvão Bastos ao piano; Hélio Delmiro na guitarra; o violão de Nelson Ângelo; a gaita de Maurício Einhorn; naipe de sopros que inclui Nivaldo Ornellas, Léo Gandelman e Mauro Senise; percussão a cargo de Paulinho Braga, Chico Batera, Paschoal Meirelles, entre outros. 








O Anjo Azul, de "atmosfera bárbara", com orquestra de cordas, foi composta para a versão de 2002 do balé, com direito a improviso do trompetista Márcio Montarroyos, que tornou-se a “melodia definitiva”. A trilha completa chegou a ser editada à época, mas o disco não foi lançado comercialmente. Na última faixa, a grande curiosidade: uma gravação rara de Beatriz feita por Tom Jobim ao piano. Cristóvão Bastos acrescentou os últimos compassos que faltavam e um solo de violino de João Daltro. Tão bela e emocionante quanto a versão de Milton. Além desta outra versão de Beatriz, há outras três faixas que não entraram no vinil de 83, e estão no cd: Dança de Lily Braun,, A Levitação e A Dança dos Banqueiros.  
































O Choro Bandido :


Eu tava pra fazer a análise dessa música logo depois de Samba de uma nota só, em meados de fevereiro.
Choro bandido sempre me fascinou pela riqueza melódica e profundidade da letra. Já tinha até umas coisas na cabeça pra escrever mas que se perderam dentre outras que entraram quando voltaram as aulas na faculdade.
"Se perderam". 


Escutei ela agora pouco e as achei rapidinho e resolvi voltar aqui pra cumprir o compromisso comigo mesmo. Choro Bandido foi composta por Chico e Edu pra uma peça de Augusto Boal, que faleceu recentemente, chamada O Corsário do Rei, em 1985. Como em todas as parcerias deles, Chico escreve e Edu musifica. Não conheço essa peça de Augusto então não vou entrar em detalhes na relação música-peça. Vou olhar como uma música solta.

O que baliza a canção do começo ao fim é um amor. Mais precisamente, a sedução. Uma sedução apelativa, naturalmente, e até infalível.

Acredito que o começo da música - e outras partes - definirão bem essa minha idéia de apelativa e infalível. 


Perceba que a primeira estrofe aparece um alguém que se declara, de um modo bem vago, falso. 


Essa falsidade assumida é simplesmente a falsidade assumida por um sedutor, que, ao decorrer da letra, vai usando, de certa forma, de discursos enganosos a fim de seduzir. Ser falso pra seduzir não é nenhum pecado, não?
Isso é confirmado com a primeira estrofe.


Não importa que os cantores (sedutores) sejam falsos, assim como eu. As suas canções (palavras/intenções) não serão afetadas por isso e sempre serão bonitas. Não leve em consideração o quão miserável e repugnante seja um poeta, pois, mesmo assim, os seus versos serão bonitos. Considero essa como uma das temáticas destacáveis da música.

Pra que a música não seja apenas mais uma música, um clichê, Chico permeia toda a letra com concessões (frases começando com "mesmo que") e figuras da cultura clássica, mitologia e afins, para serem feitos paralelos com o processo de conquista do sedutor, colocando como protagonisa o deus grego Hermes.
Vou falar um tiquinho dele e de outros mitos que aparecerão pra fazer valer a minha cara aquisição do Livro de Ouro da Mitologia.
Outras partes - definirão bem essa minha idéia de apelativa e infalível.
Perceba que a primeira estrofe aparece um alguém que se declara, de um modo bem vago, falso.
Essa falsidade assumida é simplesmente a falsidade assumida por um sedutor, que, ao decorrer da letra, vai usando, de certa forma, de discursos enganosos a fim de seduzir. 



 Um ato de um "sonso e ladrão"!


O 'sonso' é o adjetivo mais relevante no tocante à música. Já o 'ladrão' tem outra história.
Reza na mitologia que Hermes, ainda recém-nascido, roubou os bois de Apolo e, quando interrogado a respeito, negou piamente o ato de uma maneira muito persuasiva. Não é à toa que Hermes, dentre várias atribuições, é considerado o deus do ladrões, ou melhor, dos que fazem trabalhos secretos na calada da noite. 


E, por fim, é assim que se tem a imagem do deus Hermes: sonso, ladrão, enganador, fingidor, sedutor, que será explorada no decorrer da letra. 



Foi a partir da invenção da lira que as palavras usadas pelo sedutor, suas seduções, suas músicas e poesias nasceram.



Então, chega-se, ao meu ver, à mais simples e inteligente relação feita na letra com a mitologia:

Aqui está retratada a imagem das Sereias, mais precisamente dos seus cantos e a de Ulisses. 

Reza na mitologia, que os navegadores escutavam em alto e bom som o canto das sereias quando estavam em alto mar, passando por uma ilha do Mediterrâneo. Seduzidos eles iam atrás das belas melodias e vozes que ouviam. 


Ao chegarem na ilha, seus barcos colidiam com os recifes e naufragavam, sendo devorados pelas sereias logo após.
 
Ulisses foi um navegador que sobreviveu aos cantos se amarrando no mastro de seu barco, para não ir de encontro às sereias, e ordenando toda sua tripulação a tampar os ouvidos com cêra. 


Foi a partir da invenção da lira que as palavras usadas pelo sedutor, suas seduções, suas músicas e poesias nasceram.

Então, chega-se, ao meu ver, à mais simples e inteligente relação feita na letra com a mitologia, a quarta estrofe:


Genialmente, Chico nos confirma todas as idéias usadas na letra, ao escrever esse pedaço:

"Mesmo porque eu estou falando grego com sua imaginação."

Nesse momento, é como se saísse o sedutor de cena e entrasse o escritor (Chico) falando diretamente para nós, ouvintes, que ele está falando em grego com o nosso imaginário.
É interessante que fica dúbio isso: entende-se a expressão "falar grego", de que quem ouve nada entende e entende-se "falar grego" como falar sobre o grego.



Por labirintos e alçapões
Saiba que os poetas como os cegos
Podem ver na escuridão."

Depois de tanta lábia, eis que, FINALMENTE, a seduzida se rende, perto do final da música...

...Mesmo que os romances sejam assim como o nosso, conquistado por algumas falsidades, não importa, não. As nossas canções nunca deixarão de ser bonitas. Aliás, a minha canção, a minha sedução, não deixará. Mesmo eu sendo errado ao te seduzir assim, o meu amor por você não deixará de ser bom e nem o seu. Ou melhor, o nosso amor não deixará.

Viva Chico e Edu! 

(In "Amipoema")












  

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